Política monetária e realocação entre setores
Como desenhar as respostas da política monetária a choques assimétricos entre setores.
A crise originada pela Covid-19 trouxe desafios não apenas no que tange o enfrentamento das questões de saúde pública, mas também no desenho das respostas de política econômica. Veronica Guerrieri, Guido Lorenzoni, Ludwig Straub e Iván Werning já haviam elaborado sobre como um choque negativo de oferta pode gerar uma queda na demanda agregada, uma combinação não muito usual.1 Em artigo complementar, apresentado no simpósio de Jackson Hole deste ano, os autores investigam como deve ser o comportamento da política monetária em resposta à choques assimétricos entre setores.2
Eles trabalham com um modelo no qual um dos setores terá uma escassez de oferta e outro enfrentará uma queda na demanda. A grande pergunta de pesquisa é sobre como deve ser a condução da política monetária nesse caso. Não surpreendentemente, a resposta é: depende.
Primeiro, um referencial: como seria o mundo sob a hipótese de preços totalmente flexíveis? Nesse caso, o ajuste poderia ser obtido tanto com aumento dos preços no setor com pouca oferta, quanto com a queda nos preços do setor com pouca demanda. O problema é que existem certas fricções na economia que resultam em rigidez nominal de preços e salários. Assim, o reajuste entre os setores torna-se mais hermético.
A chave do processo passa, portanto, pela realocação de recursos entre setores. Os trabalhadores que ficaram desempregados (no setor com choque negativo de demanda) poderiam atuar no setor com problemas para expandir a sua capacidade produtiva (aquele com choque negativo de oferta). Mas a mobilidade do trabalho entre setores é custosa. Dessa forma, a política monetária pode influenciar o processo. Como?
Ao cortar os juros, por exemplo, o banco central pode estimular a economia e ajudar a recomposição daquele setor com pouca demanda. Mas, ao mesmo tempo, coloca ainda mais pressão no setor com pouca oferta, pressionando os preços. Seria então melhor aumentar os juros e conter os efeitos de segunda ordem na inflação, provenientes do setor com problemas na oferta? Se sim, não estaríamos piorando ainda mais a situação do setor com pouca demanda?
Como podemos perceber, as escolhas de política monetária neste momento são tudo, menos fáceis. Ainda mais porque duas externalidades estão em jogo: no mercado de trabalho, temos as externalidades (positivas) que resultam da decisão de migrar de um setor para o outro. Nos mercados de bens e serviços, operam as externalidades (negativas) decorrentes de aumento de preços. Tratemos de cada uma delas.
No primeiro caso, os trabalhadores do setor com menos demanda podem não considerar (internalizar) o fato de que, ao mudarem de setor, geram um efeito positivo para aqueles trabalhadores que permanecem nele procurando emprego, dado que a probabilidade de encontrar uma vaga de trabalho para os que permanecerem aumentou, o que traria ganhos de bem-estar social. No limite, se os salários forem totalmente rígidos (o que diminui ainda mais tanto a migração voluntária dos trabalhadores entre os setores, como a contratação por parte das empresas), faria sentido para o banco central aumentar os juros, não só conter os impactos inflacionários, mas também criar um impulso extra para que os trabalhadores procurem emprego no setor mais aquecido (aquele com falta de oferta).
Já no segundo caso, a externalidade se manifesta porque, quando uma das empresas aumentar os preços dos seus produtos nos setores com escassez de oferta, elas criam incentivos para que seus concorrentes também o façam, o que gera custos agregados com os ajustes desses preços, fazendo com que o setor como um todo perca recursos nesse processo (daí a externalidade negativa). Portanto, no limite, a política monetária expansionista poderia criar o incentivo para que os trabalhadores migrem do setor com pouca demanda para aquele com muita demanda, o que aumenta a oferta de trabalho, reduz a pressão por custos e, consequentemente, a pressão nos preços no setor com pouca oferta. Menores reajustes de preços diminuiriam as externalidades negativas.
Sendo assim, a avaliação da política monetária deve, portanto, ponderar o peso relativo de cada externalidade. Em uma situação entre os dois limites expostos, o que percebemos a partir do trabalho dos autores é que i) os índices usuais de preços podem não ser mais, no curto prazo, a melhor métrica para balizar a política monetária, ii) cuja escolha ótima contempla uma inflação temporariamente acima da meta para reajustar os preços relativos depois do choque assimétrico, iii) cujo desenho pode ajudar na realocação de trabalhadores entre setores, iv) mas, para isso, deve considerar as características estruturais da economia, que podem prescrever respostas diametralmente opostas.
Aumentar ou diminuir os juros após um choque assimétrico? O que for melhor para realocar os recursos entre os setores.
Guerrieri, V., Lorenzoni, G., Straub, L., & Werning. Macroeconomic implications of COVID-19: Can negative supply shocks cause demand shortages?. No. w26918. National Bureau of Economic Research, 2020.
Guerrieri, V., Lorenzoni, G., Straub, L., & Werning, I. Monetary Policy in Times of Structural Reallocation.