Com quantos “bitcoins” se faz uma moeda?
Como ativos digitais podem realizar diferentes funções da moeda.
O que é ‘moeda’? Uma das invenções mais brilhantes do ser humano, fruto daquele que pode ser o maior acordo social tácito já sustentado, carece de uma definição satisfatória. Geralmente, a identificação de um ativo que seja qualificado como moeda parte do cumprimento de três funções, simultaneamente: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor.
A primeira função, unidade de conta, diz respeito à utilização de um ativo como unidade na qual os preços de bens e serviços são cotados. Se você vai a uma padaria, ao cabeleireiro ou ao cinema e os preços lá estão em reais, é porque a moeda ‘Real’ realiza esse papel. Fica fácil entender tanto qual é a parcela da sua renda necessária para adquirir bens ou serviços, quanto para calcular os preços relativos entre eles. Se você for a uma lanchonete e o preço de um hambúrguer estiver em número de ‘toalhas de banho’, talvez você tenha alguma dificuldade em entender o que se passa naquele lugar.
A segunda função listada, meio de troca, versa sobre a capacidade de realizar trocas comerciais por meio desse ativo. Novamente, quando temos uma cédula de, por exemplo, cinquenta reais, podemos adquirir bens e serviços cujo preço seja igual ou inferior a esse valor nominal. Se bem que, do jeito que tudo está caro, cinquenta reais nem é mais moeda :).
Finalmente, a terceira função diz respeito à capacidade de um ativo se tornar reserva de valor. Aqui, entende-se o acúmulo de riqueza por meio desse ativo, cujo valor será sustentado por algum tipo de mecanismo ao longo do tempo.
Note que, por exemplo, processos hiperinflacionários debilitam as funções da moeda na sua raiz, a começar pela reserva de valor, correndo a riqueza de quem não consegue se proteger, o que faz com que os agentes escolham outras formas de guardar os seus recursos, gastando cada vez mais rápido aquela moeda que perde valor aceleradamente. Em algum momento, ninguém mais a aceita (não é mais meio de troca) e já não faz mais sentido cotar os preços nela (unidade de conta). Rompe-se o pacto social em todos os seus pilares e aquele ativo não mais pode ser considerado moeda.
No passado, entendia-se que a competição entre moedas que por ventura viessem a coexistir em uma região (um país, por exemplo) culminaria no prevalecimento de uma moeda apenas. Imagine o seguinte cenário: duas moedas. Se a troca entre elas não fosse de um-para-um, o que as pessoas fariam? Guardariam a mais cara e usariam a mais barata para as trocas comerciais. Se todo mundo fizer isso, a velocidade de circulação e a o excesso dessa moeda ‘mais barata’ a removeriam naturalmente, sobrando apenas uma.
E se um ativo não for desenhado para efetuar todas as funções da moeda, mas apenas uma (ou algumas)?
No passado, isso seria improvável. Como ressaltam Brunnermeier, James e Landau, um ativo para ascender à categoria de moeda, geralmente necessita de i) ganhos de escala (os custos são muito altos para manter um padrão monetário, mas podem ser diluídos conforme o número de transações) e ii) externalidades de rede (moeda precisa de um monte de gente que a utilizem; uma moeda só sua tem pouquíssima utilidade, se é que pode ser chamada de moeda).1 Com o avanço tecnológico, é possível agora vislumbrar a realização de parte das funções da moeda por um ativo.
No mesmo trabalho sobre a digitalização do dinheiro, Brunnermeier, James e Landau ressaltam a importância das plataformas que surgem para gerenciar as carteiras dos agentes que podem armazenar seus recursos em um ativo (reserva de valor), por exemplo dólares, mas quando querem efetuar transações (meio de troca), recorrem àquele instrumento cuja mobilidade (nacional ou internacional) seja mais prática (por exemplo, bitcoins), para fazer uma compra que pode, por exemplo, estar cotada em reais (reserva de valor). Veja que temos, nesse exemplo, três tipos de ativos diferentes para realizar as funções do que hoje chamamos de moeda. Desmontaram e digitalizaram a moeda!
Banco Centrais e as moedas digitais
Com a emergência de tantos criptoativos e empreitadas privadas nessa área, os bancos centrais se vêem quase que forçados a desenvolver uma moeda digital. Se a entidade não o fizer, o setor privado o fará. O Banco Central do Brasil, por exemplo, já iniciou tratativas nessa direção.2
Não vou entrar aqui nas implicações para o sistema financeiro, mas como lembram Kahn, Rivadeneyra, e Wong, não é apenas sobre “se” o banco central deve lançar uma moeda digital, mas também “como”.3 De maneira muito resumida, existem dois tipos: tokens e contas de reservas. No primeiro caso, a transação ocorre ao avaliarmos a autenticidade do ativo (por exemplo, se uma cédula de reais é verdadeira ou se é verdadeiro o bitcoin que está na sua carteira digital). No segundo caso, a verificação se dá no detentor dos recursos (por exemplo, uma transferência bancária só ocorre quando se é verificada a identidade de quem envia e de quem recebe os recursos).
Kahn, Rivadeneyra nos lembram também que a vantagem comparativa dos bancos centrais é a de consolidar operações no atacado (entre instituições financeiras), não a de se relacionar com os agentes no varejo (tendo não apenas que abrir contas individuais, mas também manter o cadastro atualizado e a conferência das informações sistematicamente, sem falar na gestão desses dados), o que pode indicar certa inclinação para o formato token, mas ainda é cedo para dizer. Neste momento, temos algo como 83 moedas digitais em desenvolvimento (dentre elas algumas poucas já desenvolvidas).
Confesso que o que mais me intriga nem é o desenvolvimento tecnológico possibilitar não apenas novas formas de moeda, mas que as suas funções sejam combinadas por ativos diferentes. O que eu considero importantíssimo é o que as diferenças tecnológicas podem gerar o que a literatura recente tem considerado como áreas monetárias digitais. Assim, a utilização de plataformas e certos tipos de ativos para determinadas funções (da moeda) podem ser definidas não mais por um caráter regional, mas em função da tecnologia adotada. Isso traz diversas oportunidades mas também riscos de várias naturezas. Em uma área monetária digital, surge a dúvida: o Real continuaria sendo utilizado se todo mundo pudesse armazenar a sua riqueza em dólares, fazer transações usando Tether (uma stable coin, já que na análise do “desmembramento” das funções da moeda eu abstraí dos riscos cambiais entre elas, algo que a arquitetura financeira terá que dar conta para esse arranjo funcionar) para preços cotados em, por exemplo, euros?
Áreas monetárias digitais será o tema do meu próximo texto, no qual vou desenvolver um pouco mais o artigo de Brunnermeier, James e Landau.
Brunnermeier, M. K., James, H., & Landau, J. P. (2019). The digitalization of money (No. w26300). National Bureau of Economic Research.
Kahn, C. M., Rivadeneyra, F., & Wong, T. N. (2019). Should the central bank issue e-money?. Money, 01-18.