Covid-19: vai dar para pagar a conta com a inflação?
A inflação alivia o peso real da dívida, mas após a crise da Covid-19 esse caminho pode não estar disponível para as economias emergentes.
A crise da Covid-19 levou à uma intensa resposta da política econômica para poder acomodar os desdobramentos macroeconômicos do combate à pandemia. Inclusive, António Neto e eu encontramos uma associação positiva (negativa) entre democracia (desigualdade) e a magnitude da resposta de política econômica.1
Em alguns países, mesmo em mercados emergentes, já é hora de falar em como pagar a conta. Uma alternativa bem conhecida daqueles que estudaram as escolhas de política econômica no Brasil é a inflação.2 Esse aumento contínuo e generalizado de preços pode corroer o valor real da dívida, caso as taxas de juros nominais não aumentem tão rápido como a taxa de inflação, conforme elaboram Kose, Ohnsorge, Reinhart e Rogoff em coluna do VoxEu que dá origem à este texto. Os autores apontam que existem certas dificuldades ao trilhar esse caminho, no entanto.
O dia depois de amanhã
Quais os problemas com essa estratégia?
Primeiro, não há segurança de que após o alívio da dívida a economia irá convergir para um nível de inflação baixo e estável. Assim, os custos econômicos associados a essa desinflação podem ser altos demais (especialmente para alguns grupos, caso consideremos a não-linearidade nos impactos de política econômica, como aqui). Há países nos quais o endividamento em moeda estrangeira e o que chamamos de “pecado original” - que na macroeconomia, seria a incapacidade de alguns países em emitir dívida externa na sua própria moeda, como proposto por Eichengreen, Hausmann e Panizza aqui - pode tornar a estratégia de pagar a conta com inflação impraticável, uma vez que a depreciação da taxa de câmbio (que usualmente acompanha essas estratégias inflacionistas) elevaria o endividamento.
Além dos fatores citados acima, é de se esperar que, uma vez identificada a escolha por inflacionar a economia para pagar a dívida, os agentes irão alterar as suas expectativas e exigir juros maiores para compensar a maior perda no poder de compra. Isso implica que as novas emissões de dívida viriam a um custo maior. Como uma outra forma do “pecado original”, na sua versão de dívida interna, manifesta-se na dificuldade em emitir dívida préfixada por prazos longos, e como as economias emergentes, em geral, têm um curto prazo médio de vencimento dos títulos de dívida, o que acontece é que isso iria encarecer as novas emissões e o resultaria no aumento do endividamento, devolvendo os ganhos que o alívio temporário advindo da maior taxa de inflação poderia trazer para o peso da dívida.
Outro ponto importante é o crescimento econômico. Após a Segunda Guerra Mundial alguns países conseguiram crescer sustentadamente e conviver com essa inflação mais alta, conforme apontam Kose, Ohnsorge, Reinhart e Rogoff. Mas será que essa é a realidade que devemos esperar após a crise da Covid-19? Neste ensaio intitulado “A insustentável leveza do crescer”, elaboro um pouco dos mecanismos do crescimento econômico de longo prazo. Não me parece que a pandemia tenha ajudado esses pilares. Pelo contrário, deve ter piorado. Claro que a recuperação da recessão está associada, dentre outros motivos, à composição no corte dos gastos por parte das famílias, mas após se levantar da queda brusca, os países vão conseguir sair correndo ou irão andar devagar (e com alguma dificuldade)? Sem falar que as perspectivas para o ambiente monetário internacional podem trazer pressões para que as economias emergentes aumentem os juros antes do que “gostariam”.
Para os autores, a saída “fácil” (e regressiva, é sempre bom lembrar) pode não estar tão disponível assim. A crise da Covid-19 é uma novela com mais capítulos para serem apresentados ainda, mesmo para as economias que já equacionaram as questões de saúde pública.
Costa-Filho, João and Neto, António (2020): Is democracy affecting the economic policy responses to COVID-19? A cross-country analysis.
Um livro clássico que apresenta as escolhas de política econômica no Brasil:
Abreu, M. (2015). A Ordem do Progresso Edição Atualizada: Dois Séculos de Política Econômica no Brasil (Vol. 1). Elsevier Brasil.