Perspectivas sobre a política monetária global
Duas visões acerca da estrutura da economia dos EUA que impactam diretamente a política monetária no país e, consequentemente, no mundo.
Ontem eu conversei com o pessoal do GEDAI (com um nome desses, não haveria como recusar; como eu disse para eles ontem a sorte é que eles não me chamaram para uma palestra no dia 4 de maio ou eu ficaria ainda mais insuportável) da Universidade Federal do Ceará sobre as perspectivas para a política monetária global. Achei interessante, portanto, elaborar no texto desta semana um pouco dos aspectos que eu acho que são importantes para analisarmos os próximos passos de bancos centrais ao redor do globo.
Geralmente, a minha ideia para o The Cool Assessor é a de evitar questões conjunturais. Mas como o objetivo deste espaço é aproximar a academia daqueles interessados pela pesquisa em macroeconomia, eu gosto de momentos nos quais aspectos que possuem um caráter prático mais imediato encontram reflexões de expoentes da academia. Quero, portanto, elaborar dois possíveis estruturas para a economia norte-americana a partir das reflexões de Larry Summers, ao resgatar a hipótese da estagnação secular de Alvin Hansen, e de Charles Goodhart e Manoj Pradhan em seu livro “The Great Demographic Reversal: Ageing Societies, Waning Inequality, and an Inflation Revival”.
Desigual, endividado, concentrado e vulnerável
Falar no pós-pandemia pode ser natural em economias que já experimentam o boom de crescimento econômico de curto prazo que é usual em episódios dessa natureza. Ou pode ser uma realidade distante naquelas que ainda lutam contra os impactos — em diversas esferas— que a proliferação do vírus gera. Em todos os casos, entendo que o mundo que emergirá é composto por um aumento da desigualdade tanto entre países, como entre regiões e mesmo dentro dos países. António Neto e eu analisamos, por exemplo, a associação entre a intensidade da resposta de política econômica e o grau de democracia e percebemos que ela é positiva.1
No mesmo trabalho, descobrimos que há uma associação negativa entre desigualdade e a resposta de política econômica, isto é, países com maior desigualdade responderam de maneira menos intensa, em média, quando controlamos por outros fatores. Como o vírus é tudo, menos democrático, as famílias e as empresas foram atingidas de maneira assimétrica. Há evidências na recente literatura sobre a crise da Covid-19 de que as atividades mais impactadas foram aquelas mais intensivas em interações sociais (e com mais dificuldade em realizar as suas atividades remotamente). Essas atividades também são aquelas cujos trabalhadores são menos qualificados e possuem um estoque de poupança (líquida) menor, quando não negativo (ou seja, podem dever mais do que têm guardado).
Essa diferença no impacto vale também para as empresas, seja pelo seu tamanho ou pelo tipo de estratégia operacional. Evidências recentes apontam, inclusive, que empresas internacionais, embora tenham sofrido um impacto inicial maior, apresentaram maior resiliência durante a crise:
Como a resposta à crise da Covid-19 teve um componente fiscal muito forte, o mundo todo estará mais endividado. Em momentos como essa crise é importante, sim, uma resposta tempestiva e forte, isto é, foi justamente o momento de gastar. Mas a conta virá (não responder traria uma conta maior, acredite) e ela terá que ser paga.
Para diversos países, importa muito se o processo de ajuste será realizado em um ambiente monetário no qual os EUA sustentam taxas de juros mais baixas e, portanto, não são uma fonte de pressão aos fluxos de capitais, ou se isso ocorrerá junto à normalização dos juros dos títulos do governo norte-americano.
É importante lembrarmos que a política monetária mudou. Eu coloquei no site desta newsletter um texto onde expliquei a alteração à época. Veja aqui. Em resumo, dois pilares fundamentais foram alterados: primeiro, implementou-se o sistema de metas de inflação média, o que nada mais é do que uma espécie de forward guidance, ou seja, uma sinalização de que o banco central dos EUA, após a economia norte-americana registrar anos de inflação mais baixa, está confortável com um período de inflação acima dos 2% ao ano e pode manter a taxa de juros baixa. Segundo, há uma preocupação maior com o desemprego de grupos da sociedade que sejam mais vulneráveis, o que também pode vir a postergar elevações das taxas de juros.
Junte isso tudo ao maior estímulo fiscal que observamos no pós-Segunda Guerra Mundial por parte do Tesouro dos EUA e nos perguntamos: a inflação vai subir de maneira não-transitória?
Insuficiência de demanda agregada
Se você acreditar no mundo em que, resumidamente, há o que chamamos de insuficiência de demanda agregada, a falta de um equilíbrio no mercado de bens e serviços que estimule o aumento dos gastos porque a taxa de juros encontrou o seu limiar inferior (que não precisa ser, necessariamente, zero, mas algo próximo de zero) gera um ambiente desinflacionário. Por que isso ocorreria? Se as oportunidades de investimentos não estiverem tão atraentes e as empresas não forem estimuladas a gastar, adicionando fatores demográficos que podem impactar (negativamente) o consumo das famílias, pode ser que, estruturalmente, exista uma falta de gastos e excesso de poupança. Para equacionar isso, a taxa de juros deveria cair. Mas se ela já se encontra no limiar inferior, ela não pode cair mais. Portanto, mesmo que seu valor seja zero, ela estaria elevada demais para as condições macroeconômicas (o que desestimula o consumo e o investimento). Há, nesse cenário, inclusive, a possibilidade de cair no buraco negro.
Sendo assim, se o mundo for aquele no qual há a estagnação secular, as pressões de curto prazo podem ser transitórias e, na verdade, a estrutura da economia, uma vez normalizada a situação pós-Covid-19, é condizente com taxas de juros baixas por um período mais prolongado.
Mudanças no mercado trabalho
Há, no entanto, uma visão diametralmente oposta. Curiosamente, a dificuldade em registrar taxas de crescimento maiores é comum às duas teorias, mas a associação com a inflação e os mecanismos são muito diferentes. E se, na verdade, a inflação baixa dos últimos anos nos EUA foi apenas um resultado da maior integração da China com o resto do mundo, oferecendo produtos que são intensivos em trabalho a um preço bem inferior ao das alternativas domésticas e, via o comércio internacional, o gigante asiático “exportou desinflação”?2 Com a mudança no modelo de crescimento chinês, esse vetor de controle dos preços pode não estar mais no horizonte.
Adicionalmente, as mudanças demográficas reduziriam a oferta de trabalho e, com ela, viria uma pressão maior para aumento de preços, justamente quando, a partir do mesmo movimento de envelhecimento da população, uma maior demanda por serviços na área de saúde gerasse uma força adicional para que os preços subissem. Para Goodhart e Pradhan, o mundo de inflação baixa acabou. E se essa for a nova estrutura da economia, quando adicionamos os estímulos fiscais ao descompasso de curto prazo entre oferta e demanda (tanto no mercado de trabalho, quanto no mercado de bens e serviços) no pós-Covid-19, o Federal Reserve pode se ver na tarefa de subir as taxas de juros antes do que espera (minando a confiança no novo arcabouço de política monetária) ou ter que “correr atrás do prejuízo” e subir com mais intensidade lá na frente, por ter mantido as taxas baixas por tempo demais.
Há quem veja o futuro repetindo o passado
Obviamente, ainda que alguma das duas teorias esteja certa (vejo problemas nas hipóteses de ambas, para ser sincero), e que a política monetária venha a ser testada antes de descobrirmos qual é a estrutura da economia norte-americana, em função de um possível descompasso pós-pandemia entre oferta e demanda em diversos mercado, o comportamento dos juros ao longo do tempo é condicionado a esse “novo mundo”, e hoje há na academia um debate que desenha cenários tão antagônicos quanto os dois que apresentei brevemente a vocês neste texto.
Stephen S. Roach tem preocupações adicionais, onde ele remonta à sua própria experiência no governo durante os anos que precederam a Grande Inflação nos EUA e nos alerta em texto recente no Project Syndicate do cuidado que temos que manter ao considerarmos aumentos de preços como exclusivamente transitórios:
Desta vez é diferente?
Costa-Filho, J., & Neto, A. (2020). Is democracy affecting the economic policy responses to COVID-19? A cross-country analysis.
Cheguei a conversar no passado com alunos da disciplina de Finanças Internacionais que a China poderia ter escapado do que chamamos de ineficiência dinâmica ao exportar o excesso de capital para os EUA, sustentando as elevadas taxas de crescimento, mas gerando o que o Ben Bernanke denominou de global savings glut.