O que fazer com a política monetária no Brasil?
Ricardo Barboza e Mauricio Furtado elaboram dez propostas para modernizar a política monetária no Brasil.
Na última coluna de Alex Ribeiro, publicada no jornal Valor Econômico (aqui), deparei-me com a citação do texto para discussão escrito por Ricardo Barboza Mauricio Furtado, intitulado Dez Propostas para a Política Monetária; texto que o Ricardo gentilmente me enviou e cujas ideias eu sumarizo aqui.1 Ressalto, no entanto, que vale muito à pena ler o artigo original. Eles mostram evidências interessantes que suportam as as reflexões que culminaram nas suas propostas, como, por exemplo, a inflação média no sistema de metas ter sido muito mais próxima da média dos limites superiores do intervalo de tolerância do que da média das metas. Além disso, há discussões sobre as consequências de cada uma das propostas, como uma maior transparência levar à maior efetividade da política monetária, por exemplo.
Olhar para atividade não como meio, mas como fim
O primeiro ponto levantado pelos autores é o de um “duplo mandato efetivo para o Banco Central”. A mudança que trouxe a autonomia formal ao Banco Central do Brasil (BCB), em 2021, também definiu um objetivo adicional à condução da política monetária: suavizar as flutuações da atividade econômica. Obviamente, para atingir uma meta de (expectativa de) inflação, o BCB passa por suavizar as flutuações macroeconômicas. Mas os autores defendem que esse objetivo não deva ser secundário" ou meramente instrumental, mas que esteja no âmago das decisões do Comitê de Política Monetária (Copom).
Mais que isso, lembram-nos que em alguns momentos, como em choques negativos de oferta, há um conflito entre esses objetivos. Aumento da inflação e queda do PIB, simultaneamente, devem ser enfrentados como? Se tivermos apenas uma meta para a (expectativa de) inflação, o BCB deve aumentar os juros apenas para conter os chamados efeitos de segunda ordem do choque. Mas, com a inclusão de uma meta para a atividade, o tamanho da resposta da autoridade monetária muda consideravelmente.
Para além do ano calendário
O BCB hoje conduz a política monetária considerando a variação do IPCA de janeiro a dezembro em cada ano. Se no meio do caminho a inflação acumulada estiver acima (ou abaixo) da tolerância, não há formalmente problema algum, desde que ao final do ano, ela esteja na meta (ou no intervalo de tolerância). Barbosa e Furtado defendem “metas de inflação de médio prazo ao invés de ano-calendário”. Faz sentido, afinal, processos inflacionários não respeitam as viradas de ano e a contenção da taxa de inflação acumulada, de maneira contínua por parte do BCB pode tornar mais fácil a condução da política monetária.
Imagine uma inflação acumulada em 12 meses exatamente na meta em setembro. Vem um choque que aumenta a taxa de inflação e leva as projeções a considerarem que ela vai ficar fora do intervalo de tolerância. O BCB deve subir fortemente os juros para corrigir isso, mas como os efeitos na taxa de inflação levam de 6 a 9 meses para se materializarem, pode ser que não haja tempo hábil para trazer a inflação para o intervalo de tolerância dentro do ano-calendário. Ou, mesmo que haja tempo, será que o custo em termos de atividade econômica vale à pena, ainda mais para um banco central com mandato duplo?
O que e como o BCB faz
Os autores clamam por “mais transparência na política monetária”. Confesso que esse é um tema muito caro para mim. O BCB deveria não só fazer um esforço maior para divulgar premissas e estimativas (esepecialmente de variáveis não-observáveis), além das projeções em si, mas também e, na minha opinião, principalmente, realizar um esforço para que a replicação de todos os exercícios quantitativos utilizados na tomada de decisão do Copom, no Relatório de Inflação e em qualquer outro estudo, possa ser realizada sem grandes problemas. Abrir mesmo os códigos dos modelos com tutoriais para reproduzir os resultados. Bases de dados bem claras e abertas. Todo mundo deveria conseguir reproduzir o que a autoridade monetária estima/projeta.
Blindar do outro lado também
Por que alguns economistas defendem a autonomia formal do Banco Central, que passa por mandatos fixos para os diretores e o presidente? A resposta da literatura econômica é que assim, a condução da política monetária seria mais técnica (ainda que seus objetivos possam, em última instância, ser frutos de decisões políticas, já que, por exemplo, a meta de inflação no Brasil é definida por pessoas que ocupam cargos definidos pelo presidente da república, com aprovação do Senado federal).2 A ideia é blindar de influências políticas. Note que até o presidente do banco central dos EUA sofre pressões, ou ao menos tentativas, ainda que tenha autonomia formal..
Mas isso é suficiente?
Os autores entendem que é necessário uma “extensão da quarentena dos (ex-)diretores do BCB” porque a “blindagem” em relação ao setor privado também se faz necessária. Há alguns problemas relacionados ao fato de que após seis meses, um diretor que regula entidades do mercado financeiro, ou que vote na condução da política monetária, assuma cargos em empresas do próprio mercado financeiro, por exemplo. Os autores entendem que estender para dois anos seria uma forma de minimizar o problema, sem criar outros que desestimulem nossos melhores quadros a atuarem na condução da política monetária e na regulação do sistema financeiro nacional.
Quem escolhe a taxa de juros
A cada 45 dias, o Copom se reúne para escolher o novo nível da taxa de juros básica da economia (e, possivelmente, o seu viés, ainda que isso não seja mais utilizado), a taxa Selic. Essa reunião é tomada pelos oito diretores de BCB e pelo presidente da instituição. Os autores entende, no entanto, ser necessária uma “mudança na composição e na explicação dos votos do Copom”. Por quê?
Porque nem todos os diretores do BCB são, necessariamente, especialistas em política monetária. Ainda que sejam excelentes em suas áreas de atuação e sejam assessorados pelos funcionários do BCB que entendem bem do riscado, Barboza e Furtado acreditam que isso não é suficiente. Eles estão certos.
Além disso, a pluralidade de opiniões pode gerar frutos benéficos para a condução da política monetária. E o formato atual não incentiva, necessariamente, essa pluralidade. Grupos diversificados perfomarm melhor, aparentemente.3
O que o BCB fala
A sexta proposta dos autores faz a gente pensar como isso até hoje não foi feito. É comum que membros do BCB se reunam com membros do setor privado para entenderem como está a percepção dos agentes em relação à economia. Mas eles são seres humanos e também falam nessas reuniões. E o que eles dizem? Bom, só quem está lá para saber. E esse é o problema. As manifestações dos membros do BCB são importantes e devem ser disseminadas o máximo possível para que todos os agentes tenham conhecimento das mesmas e não haja quem possa se beneficiar de informações privilegiadas. Por isso, a proposta no texto é de que seja realizada uma “transmissão ao vivo das reuniões com o mercado” e que elas sejam gravas. Tão simples quanto necessário.
O nível da meta de inflação
O texto traz um ponto forte e preocupante: a falta de rigor metodológico na definição da meta de inflação. Obviamente, existem custos associados à inflação alta. Todavia, também há a flexibilidade que algum nível de inflação traz. Os autores questionam se a meta em vigor é factível. A minha leitura desse trecho do texto é que eles levantam a hipótese de que 3% no (ano-calendário) não é compatível com a estrutura da economia brasileira, e que deveríamos “repensar a meta (…) com base em estudos para o caso brasileiro”.4
O Felipe Camargo fez um exercício interessante com um modelo estrutural acerca da meta de inflação no Brasil e o ajuste fiscal, veja aqui (aliás, ele, inclusive, disponibiliza os arquivos com os dados, o modelo e as rotinas para replicarem as postagens - alô, banco central!).
Qual medida inflação?
No Brasil, a condução da política monetária é feita com base na dinâmica do IPCA. O índice, que comporta a variação dos preços das cestas de consumo de famílias que ganham entre zero e quarenta salários mínimos, contém diversos tipos de bens e serviços. Alguns deles, pouco influenciados pela condução da política monetária doméstica. Assim, os autores entendem que deveriam ser estabelecidas “metas de núcleo de inflação”.
Qual é a intuição por trás da proposta? Simples. Excluir os preços administrados e de alimentos no domicílio a partir de metas para o IPCA EX0, uma medida de núcleo de inflação que é mais influenciada por preços que respondem à dinâmica doméstica e às alterações na política monetária. Há de se ter cuidado, como os autores ressaltam, para não confundir uma mudança na escolha do índice como uma oportunidade para expurgar arbitrariamente itens apenas para mascarar dados de inflação.
Quem escolhe a meta de inflação?
Os autores defendem uma “mudança na composição do CMN para a escolha das metas de inflação”. Atualmente, o Conselho Monetário Nacional (CMN) é composto pelo Presidente do Banco Central, pelo Ministro da Economia e pelo Secretário Especial de Fazenda do Ministério da Economia. Assim, dois terços dos votos estão sob a tutela, direta ou indiretamente, do Ministro da Economia. A proposta vida incluir membros externos da academia, especialistas em política monetária.
Nesse ponto, acho que os autores precisam elaborar também o fato de que o CMN não cuida apenas da meta de inflação, mas tem uma responsabilidade super importante acerca das diretrizes creditícias do sistema financeiro, por exemplo. Esses membros extras que eles sugerem vão votar também o resto ou apenas a meta de inflação? Essa resposta faz diferença.
Repensar
O último ponto que eles trazem diz respeito à implementação de “reavaliações periódicas do regime”. Mudanças incrementais e marginas têm sido feita de maneira não sistemática. A proposta aqui seria a de revisar a condução da política monetária (estratégia, instrumentos e comunicação) de tempos em tempos (10 anos de acordo com o texto). Os EUA revisaram recentemente seu arcabouços monetário, como comentei neste texto:
O que faltou?
Já que estamos falando sobre alterarções na política monetária, não seria o momento de considerarmos a importância da heterogeneidade de maneira mais explícita?
Em A política monetária da diferença, texto que escrevi para ‘O Estado da Arte’, eu elaboro um pouco como a dinâmica distinta entre famílias e também entre as empresas pode influenciar na transmissão das alterações da taxa de juros na economia. A desigualdade importa.
Já passou da hora de o BCB considerar também os efeitos (re)dristributivos das suas escolhas (veja aqui alguns fatos estilizados). E mais, será que não deveríamos desenhar metas que dêem peso maior para as variáveis mais relevantes para os agentes mais vulneráveis? A escolha das metas, dos índices, dos instrumentos, poderia ser influenciada justamente por uma preocupação nessa linha. Já há boa literatura sobre política monetária e heterogeneidade. Hoje, temos métodos e capacidade computacional e dados mais ricos para entendermos que ao longo das flutuações macroeconômicas, há também mudanças na exposição à riscos de diferentes agentes. O BCB e o debate macroeconômico como um todo no Brasil poderiam se beneficiar muito dessa atualização.
E você, o que acha das propostas dos autores?
Veja:
Crowe, C., & Meade, E. E. (2007). The evolution of central bank governance around the world. Journal of Economic Perspectives, 21(4), 69-90.
Hong, L., & Page, S. E. (2004). Groups of diverse problem solvers can outperform groups of high-ability problem solvers. Proceedings of the National Academy of Sciences, 101(46), 16385-16389.
Note que, aparentemente, uma inflação de 1-2% é compatível com economias europeias. Talvez o Brasil ainda não esteja preparado para 3% de inflação ao ano. Talvez.