Corta quem pode, aumenta quem tem juízo (e pouco crédito)
Como as fricções financeiras impedem as empresas de ganhar market share e isso impacta o comportamento da inflação frente à atividade econômica.
Uma das relações macroeconômicas mais conhecidas (para aqueles que assumem/aceitam que ela existe, é claro) é a da chamada Curva de Phillips. Hoje ela figura como um dos pilares dos chamados modelos novo-keynesianos (o tipo de modelo teórico mais utilizado pelos bancos centrais), a partir da relação entre a taxa de inflação e o hiato do produto (além de choques e expectativas), embora originalmente tenha surgido a partir de uma dispersão entre a taxa de variação dos salários e a taxa de desemprego de A. W. Phillips.1
Essa relação entre atividade econômica e taxa de inflação, que muitas vezes descreve o ‘lado da oferta’ de modelos macroeconômicos como uma síntese do comportamento das empresas no agregado, tem sido muito questionada, especialmente após a crise de 2008. O motivo é que durante e após a crise, seja nos EUA ou em algumas outras economias desenvolvidas, a taxa de inflação oscilou muito pouco ao mesmo tempo que observamos grandes variações na taxa de desemprego.
Como explicar?
Em apresentação recente, Emi Nakamura aborda essa questão a partir de dados regionais da economia norte-americana, mudanças de regimes e ancoragem de expectativas. De maneira bem simplificada, não é que a relação entre desemprego e taxa de inflação tenha enfraquecido, mas é que as expectativas dos agentes estão tão ancoradas, que “seguram” a taxa de inflação, mesmo quando a atividade econômica por si só poderia tentar “puxá-la” para outros patamares.
Uma ideia alternativa sobre essa “teimosia” da taxa de inflação (que eu entendo ser complementar) pode ser encontrada no trabalho de Gilchrist, Schoenle, Sim e Zakrajšek.2 Os ingredientes: fricções nos mercados financeiros e a formação de hábitos por parte dos consumidores, algo que tratei no texto anterior.
O que contam os dados?
Os autores observaram que a probabilidade de aumento dos preços durante a crise de 2008 era maior nas empresas com restrições ao financiamento de curto-prazo. Mesmo com a forte recessão, uma parcela das empresas efetivamente aumentou os markups durante a crise (subiram os preços ao mesmo tempo que os custos marginais diminuíram), em linha com os trabalhos de Chevalier e Scharfstein.3
Qual é o mecanismo?
Assumindo que empresas escolhem os preços de seus produtos e as quantidades produzidas de tal forma que maximizem o valor (presente) dos dividendos distribuídos aos acionistas (as famílias) e que os consumidores formam hábitos em relação aos produtos e serviços que adquirem, faz sentido que as empresas implementem aquela precificação dinâmica, na qual pode valer a pena cortar o preço do bem que eu vendo hoje, para atrair mais consumidores, como forma de um “investimento” em uma base de clientes que seria maior no futuro (e com uma elasticidade-preço menor lá na frente).
Já vimos no texto anterior que esse fator sozinho amplifica os impactos da política econômica. Mas será que todas as empresas conseguem fazer esse “investimento”? Aqui entra o papel das fricções no mercado de crédito.
Embora o sistema financeiro nos EUA seja desenhado de tal forma que as empresas busquem recursos no mercado de capitais via emissão de ações e títulos de dívida, sabemos que as necessidades de curto-prazo são, em geral, atendidas por bancos. E as falhas de mercado no crédito podem incentivar empresas “semelhantes” a terem comportamentos totalmente distintos, uma vez que tenham acesso à recursos que seus pares não dispõem.
Funciona mais ou menos assim: veio a crise, o consumo das famílias e o investimento das empresas caiu (caso queira recordar certas características da crise de 2008, veja este texto ). Frente à menor procura pelos seus produtos gera um dilema para as empresas, uma opção seria cortar os preços e tentar manter (ou até aumentar) a quantidade vendida hoje, renunciando a uma parte da receita, mas com a esperança de vender mais no futuro. Só que cada empresa enfrenta custos fixos para manter o seu negócio. E às vezes não dá para pagar as contas com os cortes de preço. Como fechar a conta? Aquelas empresas que conseguem acesso a crédito podem diminuir os preços (e aproveitar a queda nos custos marginais) para de alguma forma tentar “segurar” o máximo de clientes que for possível, até porque, quando a chuva passar, parte deles continuará com a empresa e já terá se acostumado com os seus produtos, tornando-se menos sensível aos aumentos futuros de preços.
Mas e as empresas sem acesso a crédito?
Para elas, como é difícil e custoso levantar recursos externos, o ganho que elas teriam ao cortar os preços agora, manter certa base de clientes e poder aumentar os preços no futuro é menor do que a expectativa de ganhos ao aumentar os preços agora mesmo e não perder tanta receita (alguma perda existirá porque estamos falando de uma recessão). Por quê? Porque há um descasamento entre o momento no qual os pagamentos com as obrigações devem ser feitos (pagar salários, aluguéis e empréstimos agora, por exemplo) e quando o (possível) aumento de lucro irá se materializar (no futuro).
Ou seja, as fricções financeiras acabam por alterar o fator de desconto (que pondera o valor - ou peso - que damos aos acontecimentos - lucros, consumo, etc. - no futuro) associado às decisões das empresas em relação à base de clientes, deixando-as efetivamente mais “impacientes” (ou seja, o futuro vale menos, uma vez que existe a possibilidade lá na frente de não conseguirem acesso a crédito para materializarem os ganhos com uma base de clientes maior se houver uma nova recessão). Se adicionarmos ao modelo a ideia de que a alteração de preços é custosa para as empresas, assim como fizeram os autores, observaremos que há um trade-off entre a maximização de lucros e a maximização de market share no longo prazo.
Assim, como parte das empresas nos EUA reajustou os preços para baixo durante a crise e outra parte, para cima, o resultado foi uma inflação que (ao operar em um ambiente de expectativas muito mais ancoradas como ressaltado pela Emi Nakamura), parece reagir menos à atividade econômica, mas que na verdade, estava era reagindo a diversos fatores simultaneamente, em especial, ao choque nas condições financeiras.
Clarida, R., Gali, J., & Gertler, M. (1999). The Science of Monetary Policy: A New Keynesian Perspective. Journal of economic literature, 37(4), 1661-1707.
Phillips, A. W. (1958). The relation between unemployment and the rate of change of money wage rates in the United Kingdom, 1861-1957. Economica, 25(100), 283-299.
Gilchrist, S., Schoenle, R., Sim, J., & Zakrajšek, E. (2017). Inflation Dynamics during the Financial Crisis. American Economic Review, 107(3), 785-823.
Chevalier, J. A., & Scharfstein, D. S. (1995). Liquidity constraints and the cyclical behavior of markups. The American Economic Review, 85(2), 390-396.
Chevalier, J. A., & Scharfstein, D. S. (1996). Capital-Market Imperfections and Countercyclical Markups: Theory and Evidence. The American Economic Review, 703-725.