Qual é o efeito do aumento dos gastos do governo em uma economia? Dificilmente uma pergunta é capaz de mobilizar paixões como a anterior. Feita em um ambiente mais informal, logo aparece certa polarização em relação aos efeitos. Há quem argumente que mais gasto aumenta o PIB. Funciona assim. O governo compra cadeiras para as escolas. A dona da loja de cadeiras precisa de mais pessoas para produzir a quantidade maior do que ela esperava, então contrata mais trabalhadores. Tanto o dono quanto os trabalhadores têm um aumento de renda. Felizes, vão comemorar em um restaurante. Ao pagarem a conta, deixam agora felizes os garçons e os donos do restaurante. Estes, com um melhor humor, convidam namoradas e namorados para irem ao cinema e já percebemos o que está acontecendo.
O aumento nos gastos acabou por impulsionar a produção e a renda de alguns setores, o que gera um processo que se retroalimentaria e, no final das contas esse processo e teria um efeito multiplicado, dado que para cada R$ 1 de aumento do dispêndio público teríamos mais do que R$ 1 de incremento na renda agregada. O Estado teria, portanto, capacidade de estimular a atividade econômica e elevar a renda agregada.
Na mesma conversa, no entanto, viriam aqueles que entendem que o efeito não só seria diferente, como levantam, inclusive, a possibilidade de que seja oposto, isto é, de que mais gasto pode gerar queda da renda (ou aumentos em uma proporção muito menor, com menos de R$ 1 para cada R$ 1 gasto). Por quê? Imagine que o governo aumente os seus gastos. As famílias sabem que esse estímulo é transitório e não irá gerar aumentos sustentados ao longo das suas vidas. Ademais, para financiar esses gastos precisa haver uma (combinação) de três coisas: aumentar os tributos em algum momento, aumentar a dívida ou imprimir moeda. Deixemos fora do escopo deste texto o terceiro caso.
Faz diferença se o governo escolhe entre financiar os gastos com aumento de tributos ou de dívida? Vejamos.
Se o governo escolher financiar o aumento dos gastos com aumento nos tributos no futuro, isso implica que ao longo do tempo as pessoas terão menos renda disponível para gastar. Como as famílias não gostam muito de flutuações no seu padrão de consumo (discutimos os custos associados no texto anterior), sabem que lá na frente terão que apertar os cintos. Portanto, poupam um pouco hoje para poder pagar o aumento nos impostos no futuro. Assim, se por um lado o aumento dos gastos do governo gera um acréscimo na demanda agregada, a queda no consumo atuaria na direção oposta. As empresas, antecipando o comportamento dos consumidores, poderiam cortar investimentos. Combinando essas forças, seria como se os gastos do governo “expulsassem” os gastos privados, no que a literatura denomina crowding out.
E se o governo financiar com dívida? Vejamos. Para aumentar a dívida pública, o governo tem que “disputar” a poupança das famílias com outros agentes que querem pegar emprestado (ou estimular que exista mais poupança, mas isso leva tempo). Essa disputa se materializa com os juros subindo. Maiores juros implicam um serviço da dívida maior ao longo do tempo, bem como outras taxas de juros sendo impactadas hoje. Isso tudo faz com que as famílias tenham mais incentivos a poupar e as empresas tenham menos incentivos a investir, atuando os efeitos do aumento dos gastos hoje, de maneira equivalente ao exemplo anterior.
Ou seja, seus dois amigos discutindo o que aconteceria teriam respostas diametralmente opostas. Quem estaria certo nessa discussão? Ninguém. E os dois. Calma, o quê? Vem comigo.
O que acontece com os gastos de uma família quando a sua renda aumenta? Aqui é possível se valer de uma das expressões mais utilizadas nas aulas de economia pelo mundo afora: depende. Que tipo de família? Mas o tipo importa? Os dados parecem apontar para que sim. Quando consideramos estudos como os de John Campbell e Gregory Mankiw, percebemos que se considerarmos que toda a economia é composta por apenas um dos dois tipos de famílias (representadas aqui pelos dois argumentos que surgiriam em uma conversa após a pergunta que desencadeou este texto), não achamos nem uma sensibilidade do consumo à variações de renda tão grande (o primeiro caso), nem uma sensibilidade do consumo à variações nas taxas de juros (o segundo caso). Para ser uma mistura.1
Considere uma economia em que um grupo está com certa folga no orçamento e pode decidir entre gastar agora ou no futuro. Esses seriam os poupadores no modelo simplificado de Mankiw em texto solo.2 Se as taxas de juros sobem — e como a taxa de juros é o preço da economia que liga o presente ao futuro —, eles decidem que faz sentido poupar mais agora para experienciar maior consumo amanhã. Mas faz isso só quem pode, certo? Por isso precisamos de um segundo grupo.
Imagine também que existe uma parcela da sociedade que não dispõe assim de muitos recursos. Quando aumentos transitórios de renda ocorrem, é uma oportunidade para realizar aquele tipo de consumo que ficou reprimido durante a época de vacas magras. Fora que, em geral, seriam aqueles mais endividados no modelo do Mankiw.
A existência desses dois grupos torna a transmissão da política fiscal mais interessante. Se houver muita desigualdade em uma economia, aumentar os gastos do governo tem o potencial de gerar aumentos no PIB se esse gasto ocorrer, fundamental, a partir de um desenho que faça com que o primeiro grupo seja mais tributado e o segundo, o mais beneficiado. Imagine o caso de transferências.3 Tributa-se o primeiro grupo, mas este sabe que a tributação gera uma perda transitória de renda, portanto o seu consumo cai, mas não tanto. Os recursos podem ir para o segundo grupo, cujos integrantes são muito mais propensos a gastar a renda transitória. A combinação resultante é que a política fiscal teria efeitos expansionistas.
Mas e se o governo financiar com aumento da dívida? Notem que neste caso, aquela equivalência, aquela indiferença entre o tipo de financiamento se perde. Por quê? Porque ao aumentar a dívida, o crescimento dos juros estimula a poupança. Mas a poupança de quem? Daqueles que podem poupar, justamente o grupo tributado, portanto, o impacto final poderia ser menor.
Mesmo que façamos a divisão da economia em outros dois grupos, por exemplo, em função do fator de produção que oferecem, o resultado é semelhante. No trabalho de Cristiano Cantore e Lukas Freund temos uma economia populada por trabalhadores e capitalistas e os resultados vão na linha do que abordamos.4
Ou seja, a heterogeneidade importa!
E ela importa, inclusive, ao sabermos que os efeitos também mudam conforme a composição e a intensidade do estímulo. Se o aumento transitório for muito grande, mesmo para o grupo mais propenso a gastá-lo, há incentivos a poupar uma parcela, uma vez que são as pessoas que justamente podem se ver numa situação complicada no futuro.
Aqueles leitores que resistiram bravamente até aqui podem ter várias ressalvas aos mecanismos elaborados neste texto. E estariam certos. Existem efeitos de longo prazo decorrentes de um possível má-alocação de recursos no desenho dessa política fiscal. Sem dúvida. Há também a diferença entre ela acontecer em uma expansão da economia (onde tem menos capacidade de gerar estímulos) ou em uma recessão (quando o efeito é maior). E por aí vai. Viu porque usamos tanto a palavra “depende”?
Campbell, John Y., and N. Gregory Mankiw. "Consumption, income, and interest rates: Reinterpreting the time series evidence." NBER macroeconomics annual 4 (1989): 185-216.
Mankiw, N. Gregory. "The savers-spenders theory of fiscal policy." American Economic Review 90.2 (2000): 120-125.
As transferências não entram diretamente no PIB, por um princípio correto de contabilidade nacional, mas são consideradas apenas quando se materializam como alguma forma de gasto, para não serem contabilizadas duas vezes.
Cantore, Cristiano, and Lukas B. Freund. "Workers, capitalists, and the government: fiscal policy and income (re) distribution." Journal of Monetary Economics 119 (2021): 58-74.