Quem usa o excesso de poupança dos mais ricos?
But I think, at a high level, it’s important to realize that income inequality is more than just a distribution or fairness issue. It really is an issue that’s holding back the entire economy. (Amir Sufi)
A contabilidade social nos ensina que os usos e os recursos devem ter, após tomadas todas as decisões econômicas, em um determinado período de tempo, valores iguais. O seu gasto, portanto, deve ter uma fonte de financiamento. Pode ser a sua renda, pode ser a minha renda ou a renda de alguém de outro país. Não é só esse resultado agregado que é importante, mas também a sua composição.
Há algumas décadas, com o advento de novos métodos matemáticos e, especialmente, computacionais empregados no estudo da macroeconomia, junto à novas bases de dados com informações cada vez mais granulares, o reconhecimento da importância da heterogeneidade para compreender a dinâmica macroeconômica tem crescido. Como eu já escrevi aqui, há dois tipos de pessoas. Na verdade, muitos mais.
Poderíamos identificar essas diferenças de diversas formas e tornar a nossa compreensão da dinâmica macroeconômica mais rica. Neste texto, fiquemos apenas com uma: a propensão marginal a consumir. Amir Sufi deu uma entrevista recente que inspirou este texto e comentou sobre resultados do seu trabalho com Mian, e Straub.1 Na busca por compreender como diferentes pessoas se comportam frente a variações na renda, os autores encontram que os 10% mais ricos nos EUA poupam, em média, entre 20 a 30% da sua renda. Quando consideramos os 50% mais pobres, eles basicamente consomem toda a sua renda. A parcela que está entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos poupa algo como 5-10% da sua renda.
E por que isso importa?
Porque como os ricos, que por definição ganham mais, também poupam mais, eles se tornam os grandes responsáveis (desde os anos 1980) por um aumento no volume de recursos que chega ao mercado financeiro. Não apenas do ponto de vista contábil, mas também (e especialmente), do ponto de vista econômico, esses recursos precisam ser canalizados para algum destino. O que a poupança dos mais ricos tem financiado?
Uma primeira opção seria o caso no qual essa poupança sirva para financiar o investimento (para um macroeconomista, a expressão técnica é a formação bruta de capital fixo, ou seja, aquele gasto com máquinas, equipamentos, estruturas e imóveis). A consequência desse destino seria um maior crescimento econômico. ao longo do tempo (ainda que saibamos que esse fator, sozinho, não poderia ser responsável pelo crescimento econômico de longo prazo). O que dizem os dados? Que o investimento privado tem diminuído (como percentual do PIB). Ou seja, precisamos de uma outra explicação.
Outra hipótese seria a de que esses recursos estariam procurando outros destinos fora do país, o que se materializaria em investimentos em outras regiões, o que levaria a um aumento da renda nacional. Todavia, sabemos que a relação das famílias norte-americanas com o resto do mundo é uma na qual elas são devedoras, e não credoras.
Sobram, portanto, dois outros tipos de agente: as outras famílias do país e o governo. Os dados mostram que, entre 1980 e 2007, esses recursos foram absorvidos, fundamentalmente, pelos 90% mais pobres e, em menor parcela, pelo governo. A partir da crise de 2008, o governo ganhou maior protagonismo nessa absorção.
E por que eles têm tomado emprestado? As famílias que tomam esses recursos emprestados, o fazem para comprar casas, financiar a educação, utilizar o cartão de crédito.
Qual é o problema (se é que há um)?
Em um paper recente os autores tentam dar sentido aos mecanismos pelos quais essa dinâmica gera certas vulnerabilidades.2 Eles abordam as armadilhas do endividamento, no qual há queda de crescimento econômico e do retorno do capital face ao aumento da desigualdade e ausência de políticas econômicas mais progressivas e que acomodem o problema. O segredo está não somente nas diferenças nas propensões marginais a consumir, mas também nas restrições à crédito que alguns agentes enfrentam. Pode ser que em algum momento (como após a crise de 2008), mesmo com excesso de poupança dos mais ricos, o mercado financeiro não queira canalizar os recursos para os mais pobres em função dos riscos. Se for assim, como será feito o ajuste? Quem sofrerá mais no processo?
É crucial acompanharmos se a poupança dos mais ricos financia o lado da demanda (os gastos das outras famílias e do governo) ou da oferta (por meio do investimento privado) para entendermos as vulnerabilidades e os mecanismos pelos quais a desigualdade opera na macroeconomia.
Mian, A. R., Straub, L., & Sufi, A. (2020). The Saving Glut of the Rich (No. w26941). National Bureau of Economic Research.
Mian, A., Straub, L., & Sufi, A. (2021). Indebted demand. The Quarterly Journal of Economics, 136(4), 2243-2307.