O sinal importa
O que explica o impacto da política fiscal ser diferente quando ela é expansionista ou contracionista? E como isso se relaciona ao ciclo econômico?
Quando o governo altera os seus gastos, o que acontece com PIB? Qual é a magnitude da resposta da atividade econômica frente às mudanças fiscais? Ao tomarmos como base o trabalho de Regis Barnichon e Davide Debortoli, podemos utilizar como refúgio uma expressão tão cara aos economistas: depende.1
Evidência empírica: duas abordagens alternativas
Os autores utilizam sofisticadas técnicas econométricas a partir de duas formas diferentes para identificar os choques fiscais: considerando narrativas ou com restrições no encadeamento das respostas da variáveis. Em outras palavras, eles se preocupam em isolar o que é o efeito da política fiscal (via alteração nos gastos) na atividade econômica da parte das flutuações econômicas que é gerada por outros fatores, os quais podem, inclusive, influenciar o comportamento dos gastos, tornando difícil saber o que é causa e o que é consequência.
A primeira abordagem, a das narrativas, consiste em ler os documentos que expressam os motivos das escolhas acerca das variáveis fiscais, separando-os entre os que são escolhas como resposta à dinâmica conjuntural (portanto, endógenos) daqueles que não têm sua justificativa na atividade econômica de curto prazo e seriam, dessa forma, exógenos em relação à ela. Os autores utilizam os dados de Ramey e Zubairy que fizeram essa análise e construíram uma série de tempo para os EUA.2
A segunda abordagem remonta ao trabalho de Blanchard e Perotti e entende que, mesmo que os gastos do governo respondam à atividade econômica de curto prazo, há uma defasagem nessa resposta.3 Portanto, o timing dos acontecimentos ajuda a organizar as variáveis utilizadas na análise, de tal forma que os gastos do governo não apresentem uma resposta contemporânea (isto é, no mesmo trimestre) às demais variáveis.
O que os autores encontraram? Nos dois casos, o multiplicador fiscal, isto é, o tamanho da resposta da atividade frente à variação dos gastos do governo (ou, de outra forma, quanto o PIB cresce para cada R$ 1 de aumento nos gastos do governo), é menor em políticas expansionistas (aumento do gastos) do que em políticas contracionistas (corte nos gastos). Além disso, o multiplicador aumenta em recessões (mas eles não encontraram evidências de que se altere em expansões). Como explicar esses resultados?
Teoria: duas abordagens complementares
Os autores utilizam um arcabouço teórico que possui dois alicerces principais: mercados financeiros incompletos, nos quais os agentes não conseguem se proteger de todos os tipos de choques idiossincráticos e rigidez de salários (especialmente para baixo). Vamos entender cada uma delas.
A primeira eu elaborei aqui no The Cool Assessor no meu texto sobre dois tipos de pessoas. Assuma que tenhamos na economia apenas empregados e desempregados. O primeiro tipo consegue se programar, poupar e os seus gastos com consumo são decorrentes das decisões que levam em conta o presente e as expectativas para o futuro. Já o segundo tipo, por simplicidade, tem o seu consumo constrangido pelo quanto recebe de seguro-desemprego, utilizando-o na sua totalidade enquanto procura emprego.
O segundo componente diz respeito à dinâmica do mercado de trabalho. Primeiro, há evidências de que os salários não oscilam com tanta facilidade como outros preços da economia. E eles são especialmente rígidos “para baixo”, isto é, eles não caem muito facilmente (quando caem), por exemplo, em recessões (por isso, em parte, o ajuste é feito via quantidade, ou seja, o desemprego aumenta em recessões). Truman F. Bewley entrevistou diversos empresários e constatou que eles têm receio de cortar salários durante contrações na atividade econômica e isso impactar a moral (e a produtividade) dos trabalhadores que permanecem nas empresas.4 Sem contar considerações legais e outras características do mercado de trabalho que produzem esse padrão observado no comportamento dos salários.
Quando consideramos essas duas características, podemos entender a evidência empírica encontrada. Imagine uma política expansionista. Aumentam-se os gastos do governo, o que gera uma maior demanda agregada que, por sua vez, induz as empresas a contratarem mais trabalhadores, elevando o valor gasto com salários e alterando o status de alguns de desempregado para empregado. Do ponto de vista das famílias, essa mudança não ocorre apenas no seu “tipo”, mas também na sua decisão de consumo, que é maior e reforça o aumento do PIB. Contudo, ao contratar mais trabalhadores, há aumentos de custos (seja por salários maiores e/ou produtividade marginal decrescente dos trabalhadores), e mesmo que esses aumentos não sejam repassados integralmente aos preços (ou seja, os markups são anticíclios, como elaborei aqui no caso da política monetária), algum repasse acontece (sem falar que há uma oportunidade para aproveitar e aumentar os preços dado que a demanda aumentou) em alguma medida e há aumento nos preços. Quando se torna um movimento generalizado, leva a um aumento da inflação.
O banco central, nesse caso, ao ver a inflação subir, responde com aumentos da taxa de juros, o que desestimula o gasto e torna mais atrativo poupar, retirando parte daquele impulso que seria dado caso não houvesse uma resposta da política monetária. No final das contas, o governo gastou mais R$1 e o resultado foi um PIB maior em algo entre R$ 0 e R$ 0,70, se considerarmos os resultados dos autores.
E se for um corte de gastos? Parece tudo muito simétrico, mas não é. Um menor nível de dispêndio público leva à uma queda de demanda agregada e, com ela, cai o consumo, uma vez que alguns agentes não conseguiram se proteger do fato de que a menor atividade econômica leva as empresas a demitirem parte dos seus funcionários, e agora estão desempregados e “precisam apertar o cinto”.
A política contracionista induz a redução da produção, o que gera aumento do desemprego. Mas, com salários rígidos para baixo, não há cortes expressivos nesse componente dos custos, que diminui apenas em função da produtividade desses trabalhadores aumentar, na margem. Dessa forma, há um repasse menor nos preços (novamente, ressalto aqui a importância de notar que os markups são anticíclicos, aumentam na recessão e diminuem na expansão). Como a resposta dos preços é mais demorada, a política monetária tem pouca capacidade para poder acomodar o corte de gastos — uma vez que os preços não caíram tanto quanto a atividade econômica — e não é suficiente para proteger o padrão de consumo daqueles que se tornaram agora desempregados. Sendo assim, o efeito total na economia é de que, para cada R$ 1 de corte nos gastos, o PIB cairia entre R$ 0,70 e R$ 1,80 nos estimativas de Barnichon e Debortoli.
E o momento em que isso tudo ocorreu importa. Ou seja, imagine que estejamos em uma recessão. Cortar gastos (algo que já tem um multiplicador maior) fica ainda mais potencializado. Mas aumentar gastos também terá uma potência maior. O aumento de gastos durante uma recessão não seria “combatido”, no modelo apresentado, com aumentos de taxas de juros, já que a baixa atividade econômica segura os preços, o que leva a uma maior efetividade da política fiscal, via alterações nos dispêndio governamental em recessões.
Assim, tanto o sinal da política (expansionista ou contracionista), quanto o momento em que ela ocorre (expansão ou contração) e as características dos mercados (no caso abordado, olhamos apenas para fricções nos mercados financeiros -- a falta de seguro para os choques idiossincráticos -- e no mercado de trabalho, mas podemos ter outras em outros mercados) são fundamentais para responder as perguntas do início deste texto. O desenho da política econômica (fiscal, monetária ou de qualquer outra natureza) é muito mais complicado do que parece. E, por isso, fascinante!
Barnichon, R., & Matthes, C. (2021). Understanding the Size of the Government Spending Multiplier: it's in the Sign. Review of Economic Studies, forthcoming.
Ramey, V. A. and S. Zubairy (2018a). Government spending multipliers in good times and in bad: evidence from us historical data. Journal of Political Economy 126 (2), 850-901.
Blanchard, O. and R. Perotti (2002). An empirical characterization of the dynamic effects of changes in government spending and taxes on output. The Quarterly Journal of Economics 117 (4), 1329-1368.
Bewley, T. F. (1999). Why wages don't fall during a recession. Harvard University Press.